Tudo reflete em campo
Cada vez menos acredito na ideia de dom natural, talento inato ou, para chegar ao mais popular, 'benção de Deus' para explicar resultados extraordinários. O esforço, o treino, o hábito e o ambiente são cada vez mais decisivos para o sucesso e para a alta performance. Isso serve para qualquer área da vida, incluindo o futebol.
Inúmeros jogadores sem tanta técnica e refinamento foram grandes vencedores em suas carreiras por colocarem como mola propulsora a entrega, a dedicação e a obstinação. Essas características são individuais, forças de caráter que qualquer ser humano pode desenvolver. E o molho de tudo isso é algo que já citei acima: o ambiente externo.
Que fique bem claro: defendo com unhas e dentes a ideia de que somos autores do nosso sucesso e do nosso fracasso. Quando cito o ambiente como também um dos agentes transformadores é para colocar que situações e pessoas que nos rodeiam podem nos alavancar ou nos puxar para baixo.
Vamos pegar o momento do São Paulo. A inconstância técnica, tática e política que norteia o clube do Morumbi nos últimos anos facilita ou dificulta o desenvolvimento do potencial de seus jogadores? Será que Rodrigo Caio, por exemplo, não estaria em um estágio mais avançado se o ambiente do clube fosse outro? E Lucão, considerado uma joia rara quando estava na base, não conseguindo se firmar de jeito nenhum? A culpa é mesmo cem por cento dele?
O ambiente tricolor tem doze técnicos nos últimos oito anos. E cada um com seu modelo de jogo. Existe congruência no trabalho de Edgardo Bauza e Juan Carlos Osório? E no de Ney Franco com o de Doriva? É fácil para um jogador assimilar e desenvolver comportamentos sendo que a média de permanência de um treinador e seus conceitos não é nem de um ano?
A causa dessa turbulência, claro, é administrativa. Renúncia forçada de um presidente (Carlos Miguel Aidar), brigas políticas eternas e pessoas sem competência dirigindo o futebol do clube dão o tom central das notas desafinadas dentro de campo. O primeiro passo para o São Paulo retomar a distante soberania é ajustar a casa em seus alicerces mais básicos e fundamentais. Definir uma linha e banca-la. O entra e sai constante de jogadores e treinadores, a confusão na busca por atletas experientes e a precoce venda de jovens da base são apenas a ponta do iceberg de uma direção perdida, que parou no tempo.
A queda do Mito
No futebol e na vida tenho como mantra que o sucesso e o fracasso são construídos. Se trabalha para ambos, para ganhar e para perder. Sim, há muitos que trabalham para perder: tenha atitudes e comportamentos destrutivos e não se qualifique que terá trabalhado arduamente para uma acachapante derrota. Trago isso para mostrar que a queda de Rogério Ceni não é uma derrota apenas dele. É uma derrota, mais uma dentre tantas tão comum nos últimos anos, da instituição São Paulo Futebol Clube. O trabalho de Ceni como treinador não foi bom. Mas demiti-lo neste momento é ainda pior.
Não considero bom o trabalho de Rogério pela combinação desempenho-resultado - aqui nem sempre temos uma relação de causa e feito, já que é possível jogar mal e vencer. Mas Ceni não conseguiu nem uma coisa nem outra. As ideias iniciais apresentadas eram entusiasmantes: promessa de futebol ofensivo, agressividade com a bola nos pés, busca incessante pela vitória. Mas a implementação disso passou a se comprometer quando vieram adversários qualificados pela frente (ou nem tão qualificado como o modesto Defensa Y Justicia). Eliminações no Paulistão, Copa do Brasil e Sulamericana. Falhas na execução do modelo de jogo proposto: time que marca alto, que busca ter o controle do jogo através da posse de bola tem que ter uma transição defensiva perfeita. Perdeu a bola tem que pressionar o adversário para retoma-la rapidamente ou ao menos retardar a construção ofensiva. O São Paulo não tinha isso.
A partir das eliminações e das primeiras críticas, Ceni abandonou suas convicções. Jogou pro alto o estilo ofensivo. O objetivo passava a ser se defender a todo custo. Três zagueiros, marcação em bloco baixo e aposta apenas em um ataque mais direto. Exatamente o oposto do que era proposto no início do ano. Mas comportamento de jogo não se adquire com conversas, com exibição de vídeos. É necessário treino, conscientização e tempo para aplicação. E sem isso, viu-se um time sem cara, sem identidade e abalado emocionalmente por conta dos recentes fracassos e da instabilidade e confusão que a parte tática carregava.
Mas olhando a fotografia toda, um raio-X geral e sistêmico do São Paulo, o mal começo de Rogério Ceni não é o maior dos problemas. É um deles. Mas não o maior. O conturbado ambiente político tricolor gera instabilidade dentro de campo. Quatorze técnicos entre efetivos e interinos dirigiram o clube nos últimos nove anos. Que diretoria coerente e profissional faz isso com o futebol de um clube? Cadê a convicção? E dentre esses técnicos um mais diferente do outro: apareceram estilos ofensivos como Juan Osório e defensivos como Edgardo Bauza. Como criar uma escola, identidade e filosofia de jogo respeitando a tradição do time se os dirigentes não respeitam nem o profissional que contratam? E tem mais: desde que Rogério Ceni assumiu o clube em janeiro vinte e um jogadores saíram e quinze chegaram. Em seis meses!!!
Trocar de treinador pode curar o sintoma, mas não a doença tricolor. O time pode e deve reagir a curto prazo, dar uma respirada, mas voltará a UTI muito em breve. Com esse estilo de governança, as glórias e soberania são-paulinas ficaram cada vez mais no passado.
Modelo de jogo
Porque o Corinthians é hoje o melhor time do Brasil? E por que Palmeiras, São Paulo e Santos estão penando neste momento tão crítico do ano? Pergunta complexa que envolve inúmeros fatores. Mas quero tocar em um ponto central que é a chave para entender boa parte do que compõe um resultado positivo e um resultado negativo no futebol: o modelo de jogo.
Uma equipe eficiente e vitoriosa demonstra sempre padrões e comportamentos claros de atuação. Sejam eles defensivos, ofensivos, nas transições e até nas bolas paradas.
Para exemplificar, podemos trazer uma equipe que goste de ter a posse de bola, promova sempre apoios e triangulações, circule bem o jogo até criar superioridade numérica em determinado setor do campo e aí sim atacar o alvo adversário. Para um jogo assim ser construído é preciso que coletivamente a equipe se comporte de um determinado jeito: os jogadores tem que estar sempre próximos uns dos outros, a movimentação de quem não tem a bola deve ser intensa e constante para sempre serem geradas linhas de passe que confundam o adversário e a compactação, mesmo que ofensiva, é criada naturalmente. Perceba que esse tipo de conceito ofensivo está atrelado instintivamente a transição defensiva: quando esse equipe perde a bola fica mais fácil pressionar o adversário já que naturalmente haverá muitos jogadores próximos ao setor da bola.
Por outro lado, uma equipe pode escolher como padrão ofensivo o jogo direto. Poucos passes e sempre verticais para chegar rapidamente ao gol adversário. Aqui, se espera passes sempre para frente, quase nunca para o lado e para atrás e uma certa predominância de bolas longas. Para ter esse comportamento ofensivo, pede-se um time compacto na defesa e que, obviamente, seja rápido na transição ofensiva.
Diante desses quadros que citei para apontar como qualquer comportamento no futebol tem que ser coletivo, entendido e treinado a ponto de se tornar natural você ainda tem dúvidas de que o Corinthians é o time com o modelo de jogo mais claro, bem definido e executado no país? Sai um jogador e entra outro e nós sabemos que o time do técnico Fábio Carille vai jogar de maneira compacta, com uma linha de defesa muito sólida que raramente se quebra, em uma marcação zonal e que quando tiver a bola buscará as ultrapassagens e infiltrações dos laterais e a troca de posições constantes entre Jô, Jadson, Rodriguinho e Romero no momento ofensivo. Por outro lado, conseguimos hoje definir padrões no Palmeiras de Cuca, no São Paulo de Rogério Ceni e no Santos de Levir Culpi?
Esse jeito de jogar do Corinthians vem há um bom tempo, desde as épocas de Tite e Mano Menezes - nem conto as meteóricas passagens de Cristovão Borges e Osvaldo Oliveira. E com ideias de jogos claras fica mais fácil montar o elenco. O Santos tinha conceitos claros com Dorival Júnior, mas Levir deve, na base da conversa já que não tem tempo para treinar, tentar mudar. O São Paulo vive uma crise de identidade como nunca se viu em sua história. E o elenco do Palmeiras que Cuca encontrou agora é bem diferente do que ele deixou em dezembro. Futebol não tem segredo. Tem planejamento e coerência. Vitórias e derrotas não acontecem por acaso.
* Marcel Capretz - É apresentador do SBT - Futebol Esporte Show e da rádio 105 FM. Já passou pela TV Gazeta, TV Bané d Campinas, Folha de São Paulo Online e LANCE! Jornalista formado pela Univerdade Mackenzie e pós-graduado pela Fundação Cásper Líbero, além de radialista profissional.